domingo, 19 de julho de 2009




Há uns tempos a Joana
- Pai acabei um namoro à homem
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
- Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim
o que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam urna relação quando têm outra Em segundo lugar são incapazes de
- Já não gosto de ti
de
- Não quero mais
chegam com discursos vagos circulares
- Preciso de tempo para pensar
- Não é que não te amo, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
ou declarações no género de
- Tu mereces melhor do que eu
- Estive a reflectir e acho que não te faço feliz
- Necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
e aos amigos
- Dá-me os parabéns que lá me consegui livrar da chata
- Custou mas foi
- Amandei-lhe aquelas lérias do costume e a gaja engoliu
- Chora um dia ou dois e passa-lhe
e pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres
Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam, entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar
(chichi, sede, fome, a janela de que se esqueceram de baixar, o estore)
ou fingem que dormem, porque não há paciência para abraços e festinhas, pá, e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarrados à gente no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo?
Lembro-me de um sujeito que explicava
- O maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é pensar que durante urna semana estou safo
e depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum, que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las. O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
- As mulheres têm fios desligados e um outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa para que comecem a trabalhar outra vez.
Meu Deus que pena me dão as mulheres. Se informam
- Já não gosto de ti
se informam
- Não quero mais
aí estão eles a alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte, a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores, eles que nunca mandavam flores, a colocarem-se de plantão à porta dado que aquela puta há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes gagas, cenas ridículas, gritos.
A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, Che Guevara ou eu, e eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhes caia na sorte um caramelo que passe à frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede fome-persiana-mal-descida-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
- O problema não está em ti, está em mim a mexerem na faca à mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens: até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Schubert. De Ovídio. De Horácio. De Virgílio de Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável, a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde, idiota, desonesto.
Fui.
(espero que não muitas vezes)
Rasca. Volta e meia surge-me na cabeça uma frase de Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde demais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc., que mulher não ouviu bugigangas destas?
Uma amiga contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
- Mereces melhor que eu
levou como resposta
- Pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua
- O que faço às cartas de amor que me escreveu?
E a amiga sua
- Manda-lhas Pode ser que lhe façam falta. Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
- E depois de ele se ir embora?
- Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me.

"António Lobo Antunes, Crónica da Visão"

quinta-feira, 9 de julho de 2009

É o país que temos...


Esta noite sonhei com o Mário Lino - por Miguel de Sousa Tavares


Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:


- É sempre assim, esta auto-estrada?


- Assim, como ?


- Deserta, magnífica, sem trânsito?


- É, é sempre assim.


- Todos os dias?


- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.


- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?


- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.


- E têm mais auto-estradas destas?


- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto , vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro , por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio . Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.


- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?


- Porque assim não pagam portagem.


- E porque são quase todos espanhóis?


- Vêm trazer-nos comida.


- Mas vocês não têm agricultura?


- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.


- Mas para os espanhóis é?


- Pelos vistos...


Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:


- Mas porque não investem antes no comboio?


- Investimos, mas não resultou.


- Não resultou, como ?


- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.


- Mas porquê?


- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.


- E gastaram nisso uma fortuna?


- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...


- Estás a brincar comigo!


- Não, estou a falar a sério!


- E o que fizeram a esses incompetentes?


- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo , Madrid -Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.


- Mas que tamanho tem Portugal , de cima a baixo?


- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.


Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.


- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto ?


- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca ; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.


- Como : então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?


- Isso mesmo.


- E como entra em Lisboa?


- Por uma nova ponte que vão fazer.


- Uma ponte ferroviária?


- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.


- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!


- Pois é.


- E, então?


- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.


Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.


- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...


- Não, não vai ter.


- Não vai? Então, vai ser uma ruína!


- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.


- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?


- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!


- E vocês não despedem o Governo?


- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...


- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?


- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.


- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?


- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.


- Como ? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?


- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.


Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:


- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?


- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.


- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?


- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.


- Não me pareceu nada...


- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.


- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?


- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.


- E tu acreditas nisso?


- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?


- Um lago enorme! Extraordinário!


- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.


- Ena! Deve produzir energia para meio país!


- Praticamente zero.


- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!


- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.


- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?


- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.


- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?


- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.


Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:


- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?


- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.


Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:


- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal ! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!